Tínhamos cozinhado todos juntos. Uns fizeram o bacalhau, outros prepararam a salada, e os restantes puseram a mesa. Um verdadeiro trabalho de equipa (de família!). À mesa riamos e trocávamos impressões sobre o dia que tínhamos passado a calcorrear as ruas de Hamburgo. "Não ter chovido foi uma sorte!", dizia eu.
Relembrávamos as cenas caricatas daquele dia quando, nos veio à memória, o casal português que conhecemos naquela tarde no famoso Reeperbahn. Já não me recordo como começámos a conversa mas lembro-me de dizer algo sobre os olhos tristes da rapariga ao contar que se sentiam, mesmo tendo-se um ao outro, muito sozinhos e que sentiam muito a falta da família. Para os meus botões lembro-me de ter pensado, com um sorriso meio entalado, na sua resposta a "Há quanto tempo estao em Hamburgo?". "Há seis meses...", responde.
Continuei com a conversa, "E só cá está há seis meses... Há histórias muito mais complicadas que esta. Pessoas que se encontram numa situação muito difícil, completamente diferente do que aquela que planearam quando decidiram sair do seu país."
Foi o que bastou para eu desenrolar algumas histórias de vida de amigos e conhecidos. Pessoas que não têm família a quem recorrer quando lhes falta a coragem, a força ou a alegria de um sorriso. Nisto, a J. pergunta "E os pais dessas pessoas? Não sabem o que se passa com os seus filhos? Não os ajudam, mesmo à distância?", ao que respondo com um ar meio confuso, "Saber o que se passa? Nenhum filho conta o que se passa de mau na sua vida de imigrante... A última coisa que queremos é preocupar ou entristecer os que deixámos."
Fez-se silêncio. Um silêncio ensurdecedor, interrompido pela minha tia "Mas vocês são a nossa razão de viver! Os filhos são o que dão sentido à nossa vida. Nós precisamos de saber se vocês não estão bem!".
Vejo os olhos da J. em lágrimas, em seguida os do meu pai, os da minha tia e por fim os meus. Os do meu tio, não tive coragem de verificar. Demoro uns segundos, mas percebo finalmente o porquê das suas reacções: o filho da J. encontra-se emigrado na China, o meu primo esteve quatro anos emigrado na Austrália, eu estou na Alemanha e a minha irmã prepara-se para se mudar para Singapura.
Sinto que tenho de acalmar os seus pensamentos, abrandar a roda viva de perguntas que os atropela naquele momento, principalmente os do meu pai, e digo: "Olhem à vossa volta. Eu estou bem, tenho um emprego onde me pagam bem e a horas, posso pagar uma casa modesta mas suficiente para receber a família. E isto não seria possível se não fossem os meus pais. Tal como eu, eu tenho a certeza de que a minha irmã, o seu filho, J., e o A., tia, têm a capacidade de superar todas as situações complicadas que aparecem na vida de um emigrante. Vocês deram-nos o mais importante para nós conseguirmos tudo isto: a nossa educação e a nossa força emocional. Vocês são a nossa bússola, que nos mantém na direcção certa. Que não nos deixa desistir. Porque sabemos que se houver algum problema, podemos sempre voltar ou contar com a vossa protecção. Na verdade, nós não voltamos, fugindo dos problemas, exactamente porque vocês nos deram e dão a força necessária para não o fazer."
Penso que depois desta ceia, a minha família nunca mais verá os seus filhos emigrados da mesma maneira. Aos meus primos e irmã e filho da J., "Queridos, mudei os nossos pais!".
E não era a minha intenção.
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