segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

De volta a 1988


Tenho-me deslocado algumas vezes até ao Consulado Português aqui em Hamburgo.
As instalações são novas, num edifício a 100m do antigo. O espaço foi remodelado e ainda se sente no ar o cheiro da tinta das paredes. Um sítio simpático. Pessoas simpáticas.

Esta semana voltei a lá ir e enquanto esperava pela minha vez de ser atendida, peguei numas revistas que estavam espalhadas pela mesa da sala de espera. Revistas sobre Portugal. A maioria eram revistas promocionais da TAP: imagens coloridas, cheias de flores à mistura, muitas fotos do nosso Oceano Atlântico, das nossas praias, etc... Mas mesmo ao lado do monte das revistas coloridas, encontrava-se um outro monte, desta vez de brochuras amarelas cor de "sumo de laranja azeda", com o seguinte título: "Unidades Didácticas para alunos do Ensino Complementar de Língua Portuguesa".
Na capa, uma fotografia a preto e branco de quatro supostos alunos portugueses à volta de uma mesa de sala de aula, e como cenário de fundo, dois Mapas-Mundo pendurados na parede. Nada de especial, a não ser os penteados e roupas dessas quatros pessoas. Lembrou-me as fotos dos meus pais na altura em que eu ainda não tinha nascido... Mas em preto e branco, como já referi! Abri então o dito manual de aprendizagem, interessada por saber, afinal, o quê e como se dava por estas bandas a nossa Língua-mãe.
Manuais destes tenho eu andado a estudar, mas em Alemão... Ensinam o Alemão normalmente com base em histórias, cenas da vida quotidiana, geralmente ilustradas com banda desenhada muito engraçada. Claro que o conteúdo da banda desenhada e dos textos tem sempre "algo para ser transmitido aos alunos" sobre a vida do país em causa cuja língua se pretende aprender.
Passo então à transcrição (dados e ortografia) da primeira cena quotidiana de uma família emigrante portuguesa na Alemanha, descrita na pág nº5 da tal brochura:
(a cena passa-se à mesa, hora do jantar)

ANABELA (14 anos): - "Ó João, ao menos passa a travessa ao pai para ele se servir!"
JOÃO (15 anos): -"Estou tão cansado da escola que nem consigo mexer um dedo. E logo amanhã que tenho uma "Klassenarbeit" de "Deutsch"!
MANUEL (16 anos): -" Lá porque andas no liceu, tens a mania de que só tu tens que fazer. Bem sabes o que a mim me custa acabar o 10º ano!"
MÃE: -"Para isso tens de te esforçar um pouco mais e não andar sempre na rua e na bola!"
JOÃO: -"Sabem qual é o tema que vamos desenvolver? O automóvel. Não me queres dar uma ajudinha, Manel, tu que tanto percebes do assunto?"
PAI: -"A propósito de automóveis, acho que temos de comprar um novo."
MÃE: -"Sem ter ainda acabado a casa em Portugal, como é que arranjas dinheiro para isso?"
ANABELA: -"Tem que ser, mãe, com este calhambeque já não chegamos a Portugal nas férias!"
JOÃO: -"E porque havemos de ir de carro?"
ANABELA: -"Se calhar querias ir de comboio! Era só o que faltava... Para nos acontecer o mesmo que aos pais da Carla..."
PAI: -"O que lhes aconteceu?"
ANABELA: -"O ano passado, quando voltavam de Portugal, de comboio, ficaram encharcados de azeite..."
MANEL:-"De azeite? Que horror! Como é que isso foi?"
ANABELA: "Na estação da guarda um homem com vários embrulhos, uma mala e um garrafão entrou no compartimento deles. Com muita dificuldade lá conseguiu arrumar a bagagem e o garrafão ficou por cima do lugar dos pais da Carla... Como estava muito calor a rolha saltou e o azeite jorrou para cima deles..."
PAI:-"Que desagradável!... Mas deixemos lá essa "história" do azeite e voltemos ao assunto do carro. Levar a Portugal um novo não seria nada má ideia..."
JOÃO:-"Isso é só para fazer vista... Não se esqueça que antes de chegar à terra, tem de conduzir milhares de quilómetros, passar na estrada de Burgos..."
MANUEL:-"Ora, ora, o que é que tem de especial a estrada de Burgos?"
JOÃO:-"Não me digas que não sabes que é conhecida por "cemitério de portugueses". E não é só na estrada de Burgos que morrem portugueses. Li há dias no jornal que Portugal tem uma taxa de acidentes das mais elevadas da Europa."
MANUEL:-"Acidentes dão-se todos os dias e em toda a parte, de comboio, carro, avião, até podes der atropelado ao atravessar a rua. Para mim, andar de carro é que é bom!"
JOÃO:-"Com os engarrafamentos em hora de ponta... é uma maravilha! E a poluição que provoca..."
MANUEL:-"E tu que não viesses com as teorias sobre o meio ambiente..."
ANABELA:-"O João tem alguma razão, mas não é um carro a mais ou a menos que vai alterar as coisas."
MÃE:-"Lá isso é verdade e se o teu pai acha que o podemos comprar... Eu por mim estou de acordo..."
MANUEL E ANABELA:-"Ai que bom!! E viva a sociedade de consumo!"

Hum... Aqui está uma cena típica portuguesa: GARRAFÃO DE AZEITE DE ROLHA durante uma viagem de comboio... E quanto aos MILHARES de Km entre Portugal e Alemanha, eu esclareço (já que fiz essa viagem de popó): 2500 Km (mais coisa menos coisa).

Depois de ler a pág nº 5, continuo na minha viagem entre aquelas páginas, e encontro o seguinte texto didáctico (pág nº 22) com as respectivas ilustrações a preto e branco, claro!
Título: "Já não tenho nervos para guiar automóvel!"
(a cena passa-se numa fila de trânsito)
NO AUTOMÓVEL nº 1:-"Que chatice, nunca mais chego à modista! Já vou ter que tomar mais um comprimido para os nervos..."
NO AUTOMÓVEL nº2:-"O melhor é ir ao psiquiatra. Estou descontrolado de todo."
NO AUTOMÓVEL nº3:-"Yes, please, bitte, é logo ali o restaurante! Já pode comer a sua Paella!... Estes turistas são cá uns broncos, mas dão boas gorjetas!"

Depois de dar uma vista de olhos às 52 páginas, devem imaginar o meu ar de espanto! A este consulado devem dirigir-se dezenas de pessoas por semana. Pessoas de nacionalidade portuguesa, claro, e não só. Pessoas que provavelmente nunca tiveram a oportunidade de visitar Portugal. Pessoas que escolheram ser portugueses e não alemães. Pessoas que não sabem o que é viver em Portugal. E a informação que o consulado dá, é a que existe numa brochura com 20 anos! (data de edição da brochura em que peguei, 1988. Quem sabe se não é uma reedição?).
Bom, de brochura em punho, peço para falar com o responsável pela distribuição daquelas brochuras no consulado. Apresentam-me o responsável. Eu, de sorriso de orelha a orelha, mochila às costas, casaco num braço e brochura no outro, apresento-me. Digo-lhe delicadamente que achava que a brochura que trazia na mão, não é de todo adequada para se ter numa sala de espera do consulado, pois encontra-se completamente desactualizada. O senhor (com os seus 35 anos), fica a olhar para mim, dirige os seus olhos para a brochura que trago e diz: "A senhora também pegou na piorzinha... Sabe, eu deparei-me com a existência de caixotes e caixotes dessas brochuras aqui no consulado e achei que se as colocasse na sala de espera pelo menos serviria alguém...". Ao que eu respondo: "Mas se o conteúdo se encontra completamente desactualizado, o que pretende que as pessoas aprendam? Que em Portugal nem sequer existem Auto-Estradas? Que é um país que vive de agricultura só à custa da enxada, como mostram as fotos a preto e branco?". O senhor pergunta-me, então: "Mas o que acha que eu devia ter feito?", e eu, muito delicadamente: "Estamos no país ideal para resolver o seu problema. A Alemanha tem um óptimo sistema de reciclagem de lixo. Por vezes há que tomar decisões difíceis. Mas acho que é a que deveria ter tomado". Ao que o senhor me responde (pasmem-se!): "Mas sabe que não temos capacidade para reciclar. E achamos que são brochuras que ainda servem! Por exemplo, eu mandei muitas, há pouco tempo, para África."

Até me deu um arrepio pelas costas...
Lembrei-me de uma reportagem da SIC, de há uns anos atrás, sobre um material médico que tinha sido enviado (doado, portanto) para "África", por portugueses, em condições vergonhosas! Lembro-me do ar de desesperado do médico português, que tinha recebido o material, enquanto era entrevistado. Material completamente em desuso, estragado, e até (quem sabe?) usado!

Regressei então à conversa que estava a ter e disse-lhe: " Mas porque temos nós, portugueses, a mania de enviar lixo para os PALOPs?". Entretanto, o telefone toca, e antes do senhor responsável poder atender, disse-lhe, mostrando a brochura "cor de laranja azeda": "Eu vou fazer a minha parte. Esta brochura vai comigo e vou colocá-la na reciclagem. O senhor faça o que entender.". Ele ficou a atender o telefone e eu ainda lhe ofereci mais um sorriso de orelha a orelha...

Nesta minha aventura na Alemanha, tenho tentado encontrar respostas para alguns insucessos e frustrações que fazem com que Portugal continue, em geral, na cauda da Europa. Neste dia, encontrei uma.

p.s.: entretanto, as referidas revistas já foram retiradas da sala de espera.

1 comentário:

  1. Excelente a tua atitude:)

    Com tanta coisa boa e actual para divulgar e revistas com 20 anos!!Amazing...

    Gostei muito de ler:)

    Beijinhos:)

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